Dessalinização de água: o ciclo completo de um sistema

1 de abril de 2019 - 14:39

Em Russas, no assentamento Novo Mundo, um universo de águas se fez há cinco meses. Foi quando uma adutora do Canal da Integração passou a abastecer o distrito de Lagoa Grande, onde o vilarejo está fincado, a 53 Km da sede do município. Agora, onde antes era estiagem, há água nos açudes, cisternas e também nas torneiras.

Dessas fontes, porém, não se bebe. Mesmo em tempos de chuvas e fartura, vem do dessalinizador, montado há cerca de um ano e meio, a água que enche garrafões, panelas e abastece as geladeiras de 76 famílias. E é também da máquina que sai a água, antes chamada de “rejeito”, que agora gera renda na região – ainda que pouca – por meio da piscicultura.

Divididas em três tanques, a água concentrada de sais serve a uma criação de tilápias rosa, que se adaptam bem à água salobra e são mantidas pelo mesmo conselho gestor que administra o sistema de dessalinização. Vendida a R$ 8 o quilo, a pescada completa um ciclo de sustentabilidade que respeita o meio-ambiente e dá a destinação correta para cada uma das águas que sai do sistema.

“Essa despesca aí, nós estamos tirando aos poucos, desde dezembro. É porque, na época de chuva, não dá muita gente pra comprar. Estamos esperando a Semana Santa pra terminar de vender tudo”, projetava Maria Dilma da Silva Pereira, 51, a dona Dilma, agricultora e tesoureira do conselho, enquanto os companheiros de gestão lançavam tarrafas na água para capturar os peixes.

Cabe a Dilma registrar a venda das fichas de água e o comércio do sistema produtivo de peixes, repassado pela Secretaria dos Recursos Hídricos (SRH) há alguns meses, com seis despescas incluídas e R$ 4 mil em caixa. “Mas o nosso apurado ainda é pouco. A gente gasta quase o mesmo tanto com ração. E, pra arrecadar com a safra, demora de cinco a seis meses. Mesmo assim, estamos indo”, sorri.

A criação de tilápias foi mais um passo na mudança da forma de descarte do rejeito pela comunidade. É que, no passado, outros dois dessalinizadores, instalados em obras emergenciais da Superintendência de Obras Hidráulicas (Sohidra) e mantidas pela Prefeitura local, abasteciam a comunidade. À época, contudo, o concentrado era despejado no solo. Isso agravava a salinização e desertificação da região.

“Esse é o terceiro dessalinizador que a gente tem. Só que, nos outros dois, a água do rejeito não era usada. Era derramada no chão mesmo”, conta o operador do sistema e secretário do Conselho de Gestão local, José Francisco Moreira, 47, o seu Dedé. Com a experiência de 15 anos como técnico de sistemas de dessalinização, também era ele quem operava os sistemas anteriores, desde 2001.

Neste intervalo, ressalta, já chegaram a ficar por três meses sem água, dependendo de açudes da região e carros-pipa. É que as máquinas anteriores eram mantidas pelo município e, quando quebravam, havia um processo burocrático para a liberação da verba. Agora, com a cobrança de R$ 0,50 para o fundo de manutenção, o problema foi sanado.

“Hoje, a gente atende outras comunidades da Lagoa Grande, do Sitio Piauí, a Comunidade do Riacho Divertido e a Fazenda São João. O carro-pipa ainda vem, mas só quando o açude Salgado seca. Com o canal, a gente espera não precisar mais dele”, profetizava, sob uma chuva insistente que caiu sobre a cidade na última terça-feira, 23.

A chuva que afogou as plantas
Não só à piscicultura servia a água rejeitada pelos dessalinizadores em Russas. Como forma de dar mais uma utilidade às reservas dos tanques de concentrado, o conselho gestor do assentamento, com o apoio da Secretaria dos Recursos Hídricos (SRH), investiu no cultivo da atriplex, uma planta forrageira arbustiva, que cresce em ambientes áridos e semiáridos, se desenvolvendo em solos altamente salinos.

Conhecida como erva-sal, a planta é usada na dessalinização do solo, combate à erosão, fixação de dunas, servindo ainda como complemento alimentar para caprinos, ovinos e bovinos, sobretudo na estiagem, substituindo até mesmo o resíduo. A empreitada em Novo Mundo, porém, não durou muito.

“A gente chegou a cortar e colher ela duas vezes. Moía e silava pra dar de comer aos bichos. Mas aí, faz uns três anos, deu um inverno medonho. O solo brejou e ela morreu todinha”, conta Francisco Dejacir Alves, 57, segundo operador do sistema e responsável pela manutenção dos tanques de tilápia.

Antes irrigada com a água do rejeito, a planta, nativa da Índia e trazida do Rio Grande do Norte, definhou por não se dar com a água doce. “Não ficou nada. Por isso não plantamos mais. Mas ela servia a quem tivesse bicho na comunidade”, lamenta Djacir. Ele conta que o grupo pensa em retomar o cultivo. Como opções, há o feijão guandu e uma palma forrageira, que também se dão com o sal. O grupo pedirá apoio da SRH.

Para entender

O programa Água Doce foi lançado em 2004, pelo Ministério do Meio Ambiente, durante o primeiro mandato do ex-presidente Lula (PT). Na SRH, é desenvolvido desde 2012, por meio de convênio com o Ministério do Desenvolvimento Regional – para onde o programa migrou recentemente. Tem como objetivo garantir acesso à água potável às populações do Semiárido brasileiro.

A ação tem como eixos principais a gestão, mobilização social e sustentabilidade ambiental. Através dos acordos de gestão, as comunidades aprovam regras e orientações dos direitos e deveres daqueles que serão beneficiados pela água e sistemas produtivos, o que inclui horário de funcionamento, deveres do operador, quantidade de água distribuída por família, uso da água e taxa cobrada.

Os critérios para a escolha das comunidades beneficiadas levam em conta a pluviometria da região (priorizando as áreas onde menos chove), o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a maior taxa de mortalidade infantil, o nível de concentração de Sólidos Totais Dissolvidos (STD) na água do poço perfurado, além da priorização das áreas susceptíveis à desertificação.

Em 2012, Irauçuba, na Zona Norte do Estado, era líder no ranking de piores índices dos 44 municípios que foram atendidos no Ceará. Em 2018, o posto coube à cidade de Ibaretama, no Sertão Central. Já as máquinas de dessalinização são adquiridas de duas empresas, localizadas em Fortaleza e Russas, que importam parte das peças e montam os equipamentos em território cearense.

Como funciona

No assentamento Novo Mundo, o sistema de dessalinização, que custou R$ 142.299,58, possui seis membranas e tem capacidade para produzir 1.200 litros d’água por hora. A ficha, que garante um garrafão de 20 litros cheio, é vendida a R$ 0,50. O poço profundo de onde a água é retirada tem profundidade de 100 metros.

Por lá, a Prefeitura de Russas paga meio salário mínimo ao operador do sistema e custeia a energia utilizada na máquina. Os contratos com o Executivo municipal têm duração de nove meses, entre abril e dezembro. Já os insumos e manutenção do sistema são pagos com a verba arrecadada com a venda da água. Desse dinheiro, 80% vão para o caixa da associação e 20% para a tesoureira.

Já no intervalo até que o contrato seja renovado, entre janeiro e março, 50% da verba vai para o operador do sistema, 30% para a manutenção e 20% para a tesoureira. No último mês de fevereiro, o valor apurado foi de R$ 500. Entre outubro e dezembro, quando as cisternas costumam secar, a arrecadação média é de R$ 700. Quanto ao recurso do sistema produtivo de tilápias, o arrecadado é dividido em 70% para o fundo e 10% para cada um dos três gestores.

Para entender

O programa Água Doce foi lançado em 2004, pelo Ministério do Meio Ambiente, durante o primeiro mandato do ex-presidente Lula (PT). Na SRH, é desenvolvido desde 2012, por meio de convênio com o Ministério do Desenvolvimento Regional – para onde o programa migrou recentemente. Tem como objetivo garantir acesso à água potável às populações do Semiárido brasileiro.

A ação tem como eixos principais a gestão, mobilização social e sustentabilidade ambiental. Através dos acordos de gestão, as comunidades aprovam regras e orientações dos direitos e deveres daqueles que serão beneficiados pela água e sistemas produtivos, o que inclui horário de funcionamento, deveres do operador, quantidade de água distribuída por família, uso da água e taxa cobrada.

Os critérios para a escolha das comunidades beneficiadas levam em conta a pluviometria da região (priorizando as áreas onde menos chove), o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a maior taxa de mortalidade infantil, o nível de concentração de Sólidos Totais Dissolvidos (STD) na água do poço perfurado, além da priorização das áreas susceptíveis à desertificação.

Em 2012, Irauçuba, na Zona Norte do Estado, era líder no ranking de piores índices dos 44 municípios que foram atendidos no Ceará. Em 2018, o posto coube à cidade de Ibaretama, no Sertão Central. Já as máquinas de dessalinização são adquiridas de duas empresas, localizadas em Fortaleza e Russas, que importam parte das peças e montam os equipamentos em território cearense.

 

Fonte: Thiago Paiva – Jornal O Povo

Fotos: Tatiana Fontes – Jornal O Povo